É inegável que a alteração no voto de qualidade no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), promovida pelo artigo 28 da Lei n. 13.988/20 na redação artigo 19-E da Lei 10.522/2002 – cuja constitucionalidade está pendente de análise final pelo STF[1] –, mudou a sistemática dos julgamentos ocorridos desde então e foi celebrado por aqueles que por décadas viram a dúvida dos Conselheiros no empate tornar-se certeza contra eles.
Porém, tal como nas apostas, a casa (quase) sempre vence.
Isso foi confirmado em exame quantitativo do próprio CARF sobre as decisões proferidas em 2019[2], em que se apurou que embora o voto de qualidade represente apenas 7% dos julgados, quando ocorre, favorecem à Fazenda Nacional (71% dos casos).
Em 2020, o Insper divulgou estudo, no qual foram analisados os julgamentos realizados pelo CARF entre 2017 e 2020 e, concluiu que, em média, 3,9% dos créditos tributários foram julgados por voto de qualidade favoravelmente aos contribuintes e 14,08% ao Fisco, quando comparados com base no valor de créditos e no número de processos[3]. Ainda, quando apurado somente a média de créditos, 20,8% desses julgamentos favoreceram os contribuintes e 79,2% o Fisco.
Assim, na tentativa de manter esses resultados, dias após a publicação da Lei 13.988/2020, o Ministério da Economia publicou a Portaria n. 260/20[4], indicando a interpretação a ser seguida pelos Conselheiros do CARF ao então novo art. 19-E da Lei 10.522/2002.
Nesse sentido, de acordo com o Ministério da Economia, o voto de qualidade favorável ao contribuinte não se aplicaria em matéria processual (como admissibilidade de recursos especiais), responsabilidade solidária, embargos e conversões em diligência. Mas não para por aí, a Portaria vai além. Limita a aplicação do voto de qualidade em favor do contribuinte aos casos de exigência do crédito tributário por meio de auto de infração ou notificação de lançamento[5].
E como ficam os processos decorrentes de compensações não homologadas?
Primeiro, nunca é demais lembrar os ensinamentos fundamentais do Direito. A Lei e a Portaria não se encontram num mesmo plano hierárquico e, portanto, a Portaria – norma hierarquicamente inferior – não pode alterar aquilo que fora disposto em Lei, cabendo para tanto, valer-se das ferramentas disponibilizadas para revogação ou declaração de inconstitucionalidade dela, como já realizado.
Nesse sentido, ao que parece, a Lei n. 13.988/20 foi suficientemente clara ao extinguir o voto de qualidade e determinar a votação de desempate favorável ao contribuinte, sem quaisquer ressalvas.
Assim, a limitação imposta pela Portaria ME n. 260/20 além de ilegal, tolhe a possibilidade do contribuinte de usufruir de créditos tributários para compensação. Veja-se que a situação viola o princípio da isonomia, na medida em que o contribuinte com autuação referente a determinada matéria obterá êxito em caso de empate e, por outro lado, se estiver compensando créditos daquela mesma matéria, terá a compensação não homologada.
Essa diferenciação não encontra respaldo nem mesmo nas normas da RFB. Vejamos que a IN 2055/2021, no art. 73, é clara ao definir que caso não homologada a compensação transmitida pelo contribuinte, esse terá 30 (trinta) dias para efetuar o pagamento. Isso significa que, em casos de compensação não homologados, terá também a exigência do crédito tributário. Desse modo, a restrição imposta por meio de Portaria parece desnecessária e até mesmo contrária às normas de compensação.
Ainda, é relevante um tratamento isonômico e de acordo com a Lei, diante de um cenário de inúmeros contribuintes com créditos tributários aptos a serem compensados e de incentivo da própria Receita Federal do Brasil por meio da possibilidade de compensações cruzadas, é esperado que as Delegacias de Julgamento se deparem cada vez mais com a tarefa de examinar a legitimidade de créditos tributários.
Infelizmente, na prática, o CARF tem aplicado a Portaria n. 260/20 na vasta maioria dos julgamentos[6], deixando de aplicar o art. 19-E da Lei 10.522/20 e sem descrevê-la como fundamento para seu afastamento. O que se vê, portanto, nas lições do Professor Paulo de Barros, é que essa interpretação da Portaria acaba por servir à comodidade administrativa do Estado, que em última instância, busca ter a satisfação do crédito tributário.
Em razão da não observância da legislação em razão do disposto em Portaria novamente ocasionou uma corrida aos tribunais judiciais que são chamados a solucionar a aplicação da Portaria em detrimento da Lei.
No entanto, uma vez mais o contribuinte é surpreendido com diversas decisões em primeiro grau na Justiça Federal do Distrito Federal denegando segurança por, ora entenderem que a solução adotada pelo CARF em nada viola o art. 54 do RICARF, ora por compreenderem que a Portaria 260/2020 não é ilegal[7], como excerto abaixo:
“(…) Como se percebe, a Lei nº 13.988/2020 não colocou fim ao voto de qualidade em todas as matérias de competência da Câmara Superior de Recursos Fiscais, visto que o texto legal deixa claro que o voto de qualidade foi abolido apenas quando o assunto for determinação e exigência do crédito tributário, ou seja, quando o crédito tributário é oriundo de auto de infração e a discussão do processo gira em torno da exigência do tributo lançado de ofício e das correspondentes penalidades pecuniárias.
No caso concreto, o impetrante apresentou à Receita Federal pedidos de compensação de crédito relativo (…)”
Observa-se, assim, mesmo diante da insipiente jurisprudência pelas Cortes Judiciais acerca da matéria, uma tendência de não enfrentar o ponto da questão, qual seja: a ilegalidade da Portaria 260/20 e a impossibilidade de ela seguir sendo aplicada pelo CARF.
Não se desconhece a menção do dispositivo legal ao “julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário”, porém, processos que visam a compensação de tributos ao fim serão de exigência tributária.
Há de se ressaltar também que caso quisesse limitar a aplicação do voto de qualidade favorável ao contribuinte caberia ao legislador fazê-lo quando da edição da Lei n. 13.988/20. Nesse ponto, convém lembrar ensinamento trazido por Pontes de Miranda de que “onde se estabelecem, alteram ou extinguem direitos não há regulamentos – há abuso de poder regulamentar, invasão de competência do Poder Legislativo”[8].
Portanto, ao que parece, seguirão sendo proferidas decisões contrárias à Lei e aos contribuintes no CARF, restando ao contribuinte torcer que a sorte esteja ao seu favor quando do exame pelo Judiciário.
Autora:
Giulia Benvegnú
Fontes:
[1] ADIs 6.403, 6.415 e 6.399.
[2] Quórum de seus julgamentos. Disponível em: < https://carf.economia.gov.br/noticias/2019/carf-divulga-retrato-do-quorum-de-seus-julgamentos>. Acesso em: 05/07/2022.
[3] Canado. Rahal, Vanessa. Análise de Recorrência dos Votos de Qualidade no CARF – Núcleo de Tributário. Disponível em: < https://www.insper.edu.br/pesquisa-e-conhecimento/centro-de-regulacao-e-democracia/nucleo-de-tributacao/>. Acesso em: 04/07/2022.
[4] Em relação à Portaria, já foi apresentada à Câmara dos Deputados, dois projetos de lei (PDL 316/2010 e PDL 320/2020 ), os quais pretendem sustar os efeitos da referida portaria. Até o momento, as Comissões de Constituição e Justiça e de Cidadania e de Finanças e Tributação proferiram pareceres favoráveis à aprovação destes projetos de lei, de forma que se espera um resultado no sentido de manter intacta a extinção do voto de qualidade, de forma ampla, sem ressalvas quanto à matéria e sujeitos.
[5] Art. 2º O resultado do julgamento, constatado empate na votação, após colhidos os votos nos termos do art. 58 da Portaria MF nº 343, de 9 de junho de 2015, será proclamado com o voto de qualidade do presidente de turma, na forma do § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972.
§ 1º O resultado do julgamento será proclamado em favor do contribuinte, na forma do art. 19-E da Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, quando ocorrer empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, assim compreendido aquele em que há exigência de crédito tributário por meio de auto de infração ou de notificação de lançamento
[6] Acórdão nº 9303-010.505 – CSRF – 3ª Turma; Acórdão nº 9101-005.970 – CSRF – 1ª Turma; Acórdão nº 9101-005.801– CSRF – 1ª Turma; Acórdão nº 9101-004.763 – CSRF – 1ª Turma; Acórdão nº 9101-005.976 – CSRF – 1ª Turma.
[7] 1030533-70.2022.4.01.3400 – 8ª Vara Federal Cível da SJDF; 1039686-98.2020.4.01.3400 – 17ª Vara Federal Cível da SJDF; 1004827-85.2022.4.01.3400 – 5ª Vara Federal Cível da SJDF.
[8] Apud. SCHOUERI, Luís Eduardo. “A legalidade e o poder regulamentar do Estado: atos da administração como condição para aplicação da lei tributária”. In PARISI, Fernanda Drummond; TÔRRES, Heleno Taveira; MELO, José Eduardo Soares de. (Orgs.). Estudos de Direito Tributário em homenagem ao Professor Roque Antonio Carrazza. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 191-218.