Limites da coisa julgada: relativização do trânsito em julgado e a (in)segurança jurídica

No dia 03 de outubro o julgamento dos Temas 881[i] e 885[ii], que discutem os limites da coisa julgada em matéria tributária, restou suspenso por pedido de vista do ministro Gilmar Mendes.

O tema é de suma importância e merece especial alerta na seara tributária, posto que a discussão gira em torno da possibilidade de decisão proferida pelo STF cessar automaticamente os efeitos de uma decisão já transitada em julgado. 

Apesar do fato de os julgamentos tratarem sobre CSLL, o entendimento fixado irá atingir outros tributos pagos de forma continuada.

Ao se relativizar a coisa julgada, todos os contribuintes que já obtiveram decisões favoráveis permitindo o não recolhimento de um tributo pago de forma continuada poderão vir a perder os direitos já adquiridos no passado.

Explica-se: assim como no caso da CSLL, tributo analisado no caso concreto, o entendimento se aplica para casos em que o STF declare inconstitucionalidade da cobrança de qualquer tributo. 

Se proferida decisão em sentido contrário proferida pelo STF, a qualquer tempo, ainda que a decisão favorável ao contribuinte já tenha transitado em julgado, o Fisco poderá lançar e cobrar automaticamente o tributo, sem necessidade de ajuizar ação revisional ou rescisória — argumento que até então está sendo fixado pelos ministros.

Dessa forma, é de grande importância que os julgamentos em questão sejam tratados com a magnitude que abarcam, visto que são capazes de alterar os efeitos da coisa julgada não só do tributo em discussão, mas de toda a coisa julgada em matéria tributária.

É evidente a afronta ao princípio da segurança jurídica, disposto no art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal (CF)[iii], segundo o qual “a lei não prejudicará o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito”.

No tema 881 (RE 949297), de relatoria do ministro Edson Fachin, discute-se a possibilidade de uma decisão de controle concentrado ou abstrato — julgamento de uma ADI, ADO, ADC ou ADPF —, ou, no caso do controle concentrado, no qual o STF decide em tese sobre a constitucionalidade de uma lei, cessarem automaticamente os efeitos de decisões anteriores já transitadas em julgado.

Neste caso, até 30 de setembro, os ministros do STF haviam formado placar de 6 votos favoráveis à Fazenda, para definir que a decisão judicial favorável com trânsito em julgado, permitindo o não recolhimento de um tributo, perde automaticamente o seu direito diante de uma nova decisão do STF que considere a cobrança constitucional, sem necessidade de ação revisional ou rescisória por parte da Fazenda.

Importante destacar, no entanto, que em seu voto, o Ministro Relator, Edson Fachin, refere que a coisa julgada para o passado se mantém: “não se coloca a questão da aplicação da teoria da nulidade ou da anulabilidade dos atos inconstitucionais e respectiva eficácia da decisão judicial em sede de controle abstrato de constitucionalidade”, porém em se tratando de relações jurídicas de trato continuado (aquelas que se repetem com nova constituição ao longo do tempo) a decisão com efeito erga omnes se sobrepõe a relações futuras.

O Ministro refere mais enfaticamente que não há efeitos jurídicos emanados da decisão de constitucionalidade direcionados ao passado, por não se tratar de retroatividade jurisprudencial, posto que, eventual decisão em controle concentrado que se mostre contrária à coisa julgada, em relações jurídicas tributárias de trato sucessivo, termina por corresponder à norma jurídica nova, como se novo tributo fosse. Devendo observar, inclusive, todas anterioridades atinentes aos novos tributos.

Já no tema 885 (RE 955227), de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, a discussão envolve cessação efeitos das decisões diante de novo entendimento do STF no controle difuso, em julgamento de Recurso Extraordinário pelo STF com repercussão geral.

No tema 885, o placar estava com 5 votos a favor da União na fixação da tese, ou seja, pela quebra automática das decisões diante de novo entendimento do STF no controle difuso.

Neste caso, o Relator, acompanhado por outros 4 ministros, entre eles o Relator do Tema 881, Edson Fachin, entende que a decisão do STF em um recurso extraordinário, com repercussão geral, tem o condão de fazer cessar os efeitos de julgamentos anteriores. 

O ministro relator faz um distinguishing com outros temas, nos quais a corte decidiu sobre a possibilidade de desconstituição pretérita da coisa julgada, quando ajuizada a ação rescisória. Neste caso, afirmou que o cerne da questão é saber se deve ou não haver uma limitação temporal dos efeitos futuros da coisa julgada.

Baseando-se no princípio da isonomia entre os contribuintes, o ministro afirma que “a segurança jurídica, resguardada pela coisa julgada, não é valor absoluto, sendo passível de flexibilização em favor de princípio que, na hipótese, cumpra mais fielmente a vontade constitucional.”

Houve, até o momento, apenas um voto em sentido contrário, divergência aberta por Gilmar Mendes. Para o Ministro, não há possibilidade de haver modulação de efeitos para o passado, devendo ser observado o instituto da ação rescisória para tanto.

O ministro refere que a relevância a ser analisada é o fato de a decisão ser proferida no Plenário do STF, não importando se possui ou não repercussão geral reconhecida, ou se ocorre no controle concentrado ou difuso.

Em ambos os casos – Tema 881 e 885 – embora um trate sobre a constitucionalidade ou não de uma lei, enquanto no outro se julgue o caso concreto levado ao juízo, o princípio da segurança jurídica será fortemente afetado.

Assim, caso a Corte admita a flexibilização da coisa julgada de tal modo que altere a segurança jurídica, se estará diante de um perigoso cenário em que as garantias constitucionais serão relativizadas a ponto de não termos mais a força da coisa julgada.

É importante salientarmos que os efeitos da coisa julgada protegem todo o ordenamento jurídico brasileiro, motivo pelo qual esta não deve ser relativizada por decisões judiciais, ou leis infraconstitucionais.

Com fito de proteger a segurança jurídica, comumente, o STF modula os efeitos de decisões exatamente para que não haja a quebra do preceito constitucional, sendo inequívoco que o dever protetivo do Tribunal ultrapassa os direitos alegados em ambos os casos aqui debatidos.

Em verdade, a Carta Magna é destinada a assegurar todo o sistema democrático de direito do país, uma vez que prevê em seus preceitos a preservação da segurança jurídica, impedindo que o direito adquirido, ato jurídico perfeito e a coisa julgada, como no caso em tela, sejam violados.

O Supremo Tribunal Federal, no que lhe concerne, deve proteger os ditames constitucionais, posto que é um compromisso assumido pelo seu Presidente o dever “de manter, defender e cumprir a Constituição”[iv].

Portanto, o julgamento dos RE 955.227 e 949.297 devem ser concluídos pela Corte Suprema em observância ao impacto não só financeiro aos cofres públicos, mas também ao sistema jurídico como um todo, ao passo que a relativização da coisa julgada ensejará em prejuízo imensurável a toda a coletividade.


AUTORAS:

ELLEN SOUZA MARTINS, Advogada, Coordenadora do Departamento Jurídico do Escritório Franchi & Galvani, Especialista em Direito e Processo Penal, Ciências Criminais, Direito de Família e Sucessões, e Direito e Processo Tributário.

LARA HOELTZ SPERB, Advogada Tributarista no Escritório Andrade Maia, Especialista em Direito e Processo Tributário.


FONTES:

[i] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4930112

[ii] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4945134

[iii] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

[iv] Art. 1º, do ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS, da CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988.

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