Um ano e três meses após o março em que o Brasil começou a se fechar em casa, é seguro afirmar que a pandemia de COVID-19 mudou a forma como nos relacionamos com a internet [1]. Se há muito as redes já vinham sendo facilitadoras, foram alçadas ao posto de mediadoras imprescindíveis da vida privada e da profissional.
Passado o susto inicial com a mudança abrupta na rotina, foi a internet que possibilitou que continuássemos a desempenhar nossas atividades profissionais, que adaptássemos nossos estudos, que acessássemos uma oferta infindável de lives, que nos sentíssemos mais próximos de nossos familiares e amigos. Por meio de telas comemoramos aniversários, casamentos, formaturas, brindamos conquistas e dividimos a dor da saudade e da perda de pessoas queridas.
Devo pontuar que tudo isso, por óbvio, restringe-se a um recorte socioeconômico bastante específico e privilegiado da população, empregado, com acesso à moradia, educação formal, tecnologia, dispositivos eletrônicos e serviços de qualidade. Um quinto dos brasileiros entrou a pandemia sem acesso à internet [2]. Outros tantos, pela natureza das funções, jamais tiveram a possibilidade de desempenhá-las de forma remota. Muitas mulheres precisaram renunciar suas posições no mercado de trabalho por não terem com quem deixar seus filhos [3]. Sem falar nas milhares de pessoas que perderam suas vidas ou sobreviveram com sequelas, havendo prevalência de tais desfechos entre homens negros e moradores de periferias [4]. A pandemia, que encheu sinaleiras com pedidos e fez saltar a população de rua, escancarou as já tão significativas desigualdades social, racial e de gênero, que alguns insistiam em ignorar [5].
Em meio a esse cenário brutal, a internet, território de oportunidades para aqueles que podiam dela fazer uso, tornou-se, também, palco primordial para práticas delitivas. A criminalidade, quando combatida da forma errática como acontece no Brasil, não deixa de existir, apenas migra. E, com o distanciamento social e a redução da maioria das atividades comerciais, foi por meio de crimes cibernéticos que infratores deram vazão a suas práticas.
Os números durante a pandemia de COVID-19
Os crimes cibernéticos – também chamados de crimes digitais ou informáticos – são práticas delitivas que fazem uso do meio virtual com a finalidade de produzir efeitos no mundo real, afetando os mais variados bens jurídicos, como a honra, o patrimônio, a intimidade, a privacidade.
Embora não sejam novidade no Brasil, foi durante a pandemia de COVID-19 que alcançaram os maiores índices vistos até então. De acordo com a Fortinet Threat Intelligence Insider Latin America [6], de janeiro a setembro de 2020, o país sofreu mais de 3,4 bilhões de tentativas de ataques na internet. Quanto a fraudes financeiras, confirmou-se em números o que já se sabia empiricamente por notícias, avisos e postagens de conhecidos em redes sociais. A Federação Brasileira de Bancos [7] apontou ter havido um aumento de 80% nas tentativas de ataques de phishing, de 70% de golpes do falso funcionário e de falsas centrais telefônicas e de 60% em tentativas de fraudes contra idosos.
Especificamente em relação a crimes contra mulheres, da mesma forma como houve um crescimento vertiginoso de delitos no contexto doméstico e familiar [8], também ocorreu no universo digital. De 2019 para 2020, os registros de crimes cibernéticos com vítimas mulheres saltou de 7.112 para 12.698, um aumento de quase 80% [9]. Dentre os delitos mais recorrentes, destacaram-se ameaças, crimes contra a honra, pornografia de vingança e stalking.
Os dados, por si só, já são chocantes. Se levarmos em consideração que representam apenas a fração de delitos que chegou ao conhecimento das autoridades, havendo outros tantos que sequer são identificados ou registrados, a perspectiva é ainda mais assustadora.
Frente a isso e à dificuldade de vislumbrar outras formas de combater tais práticas, a resposta dada pelo Poder Legislativo foi a criação de novas figuras típicas e o endurecimento penal de outras já existentes.
A Resposta Legislativa
A primeira mudança nesse sentido chegou com a Lei nº 14.132/2021, em março deste ano, que acrescentou o crime de perseguição – ou stalking – ao Código Penal, com pena de reclusão de seis meses a dois anos e multa. A importância desta previsão específica reside no fato de que, antes, tais condutas não se enquadravam em nenhum tipo penal existente, impossibilitando que o Estado processasse criminalmente os agentes. Deve-se ressaltar que, embora não seja direcionada exclusivamente a delitos cometidos por meio da internet, é nas redes sociais (ou com o uso destas) que acontece boa parte das ações descritas no art. 147-A. Ilustrativo disso é o crescimento de cerca de 150% dos registros de situações de perseguição virtual no estado da Bahia, apenas no primeiro mês de vigência do artigo [10].
A segunda novidade se deu em abril, a partir da derrubada, pelo Congresso Nacional, do veto presidencial ao § 2º do art. 141 do Código Penal, relativo à majorante que prevê que a pena deve ser triplicada no caso de crimes contra a honra (injúria, difamação e calúnia) praticados ou divulgados por meio de redes sociais. Dentre os fatores que justificam o recrudescimento da sanção nessas situações, destacam-se, além do maior alcance das ofensas, a falsa sensação, em virtude do isolamento que as telas propiciam, de que não há consequências no “mundo real” para o que é praticado dentro delas e também a falta de temor ou de constrangimento de alguns quanto a proferir ofensas no ambiente virtual, em razão de se sentirem protegidos por um aparente anonimato.
Em maio foi a vez de um conjunto de alterações introduzidas no Código Penal pela Lei nº 14.155/2021. A invasão de dispositivo informático, prevista no art. 154-A, passou a se configurar mesmo nos casos em que o dispositivo informático não é alheio, bastando que esteja sob o uso de outra pessoa. Além disso, deixou de ser necessário que a invasão se dê por meio de violação indevida de dispositivo de segurança. A pena, de detenção de três meses a um ano, passou para de reclusão de um a quatro anos, podendo ser aumentada se dessa invasão resultar algum prejuízo econômico.
O crime de furto, por sua vez, ganhou uma qualificadora e duas majorantes, nos §§ 4º-B e 4º-C do art. 155. Quando se tratar de furto mediante fraude cometido por meio de dispositivo eletrônico ou informático, a pena terá um patamar de quatro a oito anos. A sanção poderá ainda sofrer um aumento em caso de uso de servidor mantido fora do território nacional ou em caso de ter por vítima idoso ou vulnerável.
Já o delito de estelionato, previsto no art. 171, ganhou uma qualificadora, definindo a pena entre dois e oito anos quando o agente utilizar informações a partir de indução a por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de e-mail, e uma majorante, que, a depender da relevância e do resultado danoso, pode aumentar a pena de um a dois terços, caso o servidor de internet utilizado se localize fora do território nacional.
Por melhores e mais compreensíveis que tenham sido as intenções dos legisladores ao promover tais mudanças, o estancamento e a redução dos crimes cibernéticos depende, em muito, da consciência e do comportamento dos usuários das redes. O aparente isolamento que, de um lado da tela, encoraja pessoas a praticarem delitos é o mesmo que, do outro, diminui a percepção dos riscos a que estamos submetidos, como se não fizéssemos parte de uma rede mundial. É imprescindível, portanto, ter em mente que os acessos, cliques e postagens realizados a partir de ações individuais no computador ou no celular se contrapõem a uma realidade de centenas de milhões de pessoas conectadas ao mesmo tempo – e movidas pelas mais variadas motivações.
Autora:
MARIANA GASTAL
Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS e especialista em Direito dos Negócios pela UNISINOS. Advogada criminalista no escritório Felipe de Oliveira Advocacia e professora universitária na graduação em Direito da UniRitter.
mariana@felipedeoliveira.adv.br
LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/mariana-gastal/
[1] Acesso em: https://www.byteweb.com.br/pandemia-de-covid-19-mudou-a-forma-como-usamos-a-internet/ e https://www.abranet.org.br/Noticias/Pandemia-faz-consumo-da-internet-dobrar-no-Brasil-3379.html?UserActiveTemplate=site&UserActiveTemplate=mobile%252Csite%252Cmobile#.YMlrrJNKg1I
[2] Acesso em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/17270-pnad-continua.html?edicao=30362&t=destaques
[3] Acesso em: http://mulheresnapandemia.sof.org.br/wp-content/uploads/2020/08/Relatorio_Pesquisa_SemParar.pdf
[4] Acesso em: https://www.medicina.ufmg.br/negros-morrem-mais-pela-covid-19/
[5] Acesso em: https://www.oxfam.org.br/justica-social-e-economica/forum-economico-de-davos/o-virus-da-desigualdade/
[6] Acesso em: https://www.fortiguardthreatinsider.com/pt/bulletin/Q1-2021
[7] Acesso em: https://portal.febraban.org.br/noticia/3522/pt-br/
[8] Acesso em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf
[9] Acesso em: https://new.safernet.org.br/?field_subject_value=All&field_type_value=All
[10] Acesso em: https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2021/06/07/lei-de-stalking-crimes-virtuais-cresceram-cerca-de-150percent-na-bahia-aponta-cnb.ghtml